ARTIGO DE BERNADETE CAVALCANTI.

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EU, MINHA MÃE, NÓS...
(Por Bernadete Cavalcanti - jornalista - btbt40@yahoo.com.br)

No último sábado, 25, ganhei mais proteção no (e do) alto: D. Felisbela depois de cuidar de mim e dos meus irmãos por aqui, na sua missão de mãe, se foi...

Certamente resolveu partir por ter adquirido a certeza que já podíamos mesmo caminhar com “as próprias pernas”, embora que, para as mães, os filhos precisam sempre delas, tenham a idade que tiverem.

Passei boa parte da vida, especialmente da minha infância e adolescência, pensando como seria quando a minha mãe se fosse: chorava (muitas vezes e às escondidas para que ninguém soubesse o porquê das minhas lágrimas) o meu medo de “perdê-la”, quando ainda acreditava na morte como o fim e não como um novo recomeço.

O meu pai já havia partido quando éramos crianças, eu, só tinha três anos, e tudo que havia me deixado era àquela imagem de um homem caído ao chão, quando do seu acidente com uma arma de fogo. E depois a certeza vinda da fala de todos, do quanto ele era GRANDE.

Cresci me perguntando por que todos, pelo menos os da minha idade, em Portalegre, tinham pai e eu não. Deve ter sido por isso que a possibilidade de ficar sem mãe, era tão assustadora para mim, porque metade do que temos de melhor eu já havia “perdido”.

Naquela fase, ainda não tinha compreensão da bondade e Deus, pois questionando a partida do meu pai, nem percebia que quase como uma compensação, ele havia me dado duas mães. Mães tão diferentes e indubitavelmente, tão iguais, sobretudo no amor, mesmo que demonstrado de formas tão diferentes.

O presente divino foi tão perfeito que as duas eram equilíbrio nas suas diferenças. Enquanto uma educava a outra deseducava, enquanto uma ia a outra ficava, enquanto uma punia pelos minhas traquinagens, e não eram poucas, a outra escondia os "mal feitos", enquanto uma exigia disciplina e educação a outra exibia os meus avanços na escola. Mas as duas, igualmente me colocavam embaixo “das asas” guardiãs que só as mães, verdadeiros anjos, as têm.

Em D. Felisbela vi, ao longo do seu tempo comigo, a fortaleza edificada, órfã aos 17 anos, viúva, com quatro filhos, aos 33 anos, se mostrava uma mulher além do seu tempo. Nunca foi a esposa, como era a maioria das mulheres da sua época, foi, durante os nove anos em que esteve casada, a companheira do marido, secretariando-o no seu ofício de “comprador de algodão”.

A ela competia à tarefa de anotar, num grosso livro de “contas correntes” débitos e créditos de todas as safras de algodão que Portalegre produzia e o meu pai negociava. Pagar, receber, emprestar, gerenciar a casa e garantir almoço suficiente para quem, por ventura chegasse, sem aviso prévio, eram tarefas dela.

Católica fervorosa desde sempre, nos imprimia à sua religião com a obrigatoriedade da missa dominical, a aonde íamos exibindo, a cada semana, um vestido novo, confeccionado com uma perfeição ímpar por ela mesma. O vestido, fosse dos tecidos finos como pele de ovo ou organdi bordado, tinham seus modelos devidamente copiados das parcas revistas de moda que ela conhecia e, na sua grande maioria, criados por ela.

De todos os filhos sempre fui a mais parecida com ela, pelo menos eram o que todos diziam. Parecíamos fisicamente e até na personalidade, talvez por isso divergíamos muitas vezes, pois os iguais não se atraem, se repelem.

Comigo ela viveu mais a desobediência que a obediência, pois enquanto a minha irmã ouvia as suas determinações e acatava, eu, as ouvia e questionava. Respeitou a maioria dos meus desejos e atitudes e nunca foi capaz de interferir nas minhas decisões mais extremas.

Teve que me transferir de um colégio de freiras, quando, com 14 anos eu lhe disse que lá não estudaria mais, e que se ela insistisse em me manter lá, eu não passaria de ano.

Repeti a sétima série desafiando a autoridade de mãe, mas, sobretudo pelo desejo de me libertar daquele colégio que me parecia uma prisão, e que ela, como mãe, só conseguia enxergá-lo como a melhor escola.

Aos 18 aceitou a minha escolha profissional e me presenteou com uma pequena festa na minha aprovação no vestibular. E foi num dia qualquer de janeiro de 1981 que eu e minha mãe deixamos de morar na mesma casa, porque juntas sempre estivemos.

E a vida seguiu pra mim “numa cidade grande” e ele voltou para o pequeno lugar que ela amava; Portalegre, agora com um único filho em casa, justamente o que jamais a deixaria, a sua maior missão na terra; Luís, o seu filho especial.

Ano passado quis Deus que nos juntássemos de novo, para vivermos na igualdade as nossas diferenças, e por ironia em papéis invertidos, quando uma isquemia lhe tirou parte dos movimentos. Fui à filha que virou mãe e até madrasta. Madrasta, sobretudo quando a vi, indignada pela paralisia, trilhando o caminho da pior de todas as enfermidades: a depressão.

Tentei, do único jeito que sabia, travestindo-me de mãe autoritária, desviar-lhe daquela trajetória que, se seguida, seria um caminho sem volta. Via a sua fé abalada pela enfermidade e o pessimismo tomando forma.

E com isso eu não concordava, isso eu não podia deixar prevalecer. Foram os mais duros meses de minha vida. Vivi o misto de pena, incompreensão, revolta, isolamento, desamparo, responsabilidade demasiada, incapacidade e impotência, misturadas ao meu amor por ela.

Em contrapartida exercitei a minha doutrina, fiz da minha Madrinha a minha conselheira, a minha psicóloga, a minha sustentação.

Tentei transformar todas as dificuldades em piada e conheci os verdadeiros amigos, em particular os de Portalegre.

Nada na nossa vida é por acaso.

Dias antes de deixá-la, porque o trabalho me imprimia à obrigatoriedade do retorno a Natal e precisava de tempo para mim, também, despedacei-me como um vaso que quebra, represei as lágrimas antes que elas corressem e com uma coragem que não era minha, uma insensibilidade que não tenho a olhei e disse:

- Agora é por sua conta, você pode e vai comandar a sua casa de novo, mesmo nessa cadeira de rodas.

E ela respondeu: -Eu vou.

Entreguei-lhe um caderno com anotações de despesas, mostrei-lhe aonde tinha algum dinheiro reservado, além do das despesas diárias e a deixei encarregada de cuidar de tudo.

A minha intenção era mostrar-lhe que era possível viver e fazer, mesmo portando limitações. Complementei : E cuide do “meu filho” também.

Ela sorriu e respondeu: Tá Certo.

O filho ao qual eu me referia, é o meu irmão mais velho, portador de paralisia cerebral.

Peguei um pequeno travesseiro que ela insistia em tê-lo por perto, ao qual eu apelidei de “marido”, e disse: Fique de olho no seu marido, não vá o deixar ir para a farra.

Não trouxe comigo nenhuma culpa, pois tinha certeza ela não estava sozinha. Havia, além das pessoas responsáveis por cuidar dela, os verdadeiros amigos que desde o dia 01 de março do ano passado, se transformaram em filhos e estavam por perto, sempre. Como na verdade estiveram. Foram essas pessoas que, sem nenhum laço consanguíneo, assumiram o nosso lugar na nossa ausência e ajudaram até no momento do seu desencarne.

No dia destinado a sua partida, ela viajou cedo, esperou o nascer do sol, de um sábado pós-carnaval, para renascer na vida espiritual. Foi acolhida com o amparo que a espiritualidade não nega as almas altruístas. Segundo os que acompanharam o seu desligamento da matéria, sofreu o mínimo, nada reclamou e teve a lucidez de ainda fazer a prece do Pai Nosso antes de deixar a terra.

Minha mãe desencarnou com o equilíbrio que teve em vida, mesmo com todo o medo que tinha da morte, conseguiu manter a serenidade ante ao que mais a assustava. Desde o momento que eu soube através da “filha caçula” dela, Aglagilma, que ela estava por um fio, consegui me manter tranquila e pedir ao anjos espirituais que a recebessem como ela merecia.

Deus já havia me dado a capacidade de suportar a dor da partida de uma mãe, há dois anos, e eu já sabia que seria capaz, de novo. Passei a imaginar a minha mãe, não como um corpo frio em um caixão cheio de flores, mas como uma criatura caminhando numa cidade espiritual e sendo acolhida por quem a ama.

Mais do que vê-la fria e imóvel, como ficam todos quando se desligam da sua essência; o espirito, preferi abraçar e agradecer individualmente a cada um dos que se encontravam na nossa casa, por partilharem conosco daquele momento, e sobretudo pela solidariedade e apoio prestado ao curto e tão longo ano da sua convalecença.

Morrer, felizmente não é o fim, porque se fosse Deus não seria justiça, nem bondade. Morrer, nada mais é que a nossa transmutação pra um nascer de novo, sobretudo aqui nesse plano.

A minha mãe viveu nessa encarnação a maioria dos seus resgates, e não foram poucos. Passou por todas as dores, mas Deus, embora fosse seu pedido, não lhe concedeu a maior de todas; a de sepultar um filho, visto que ela não queria partir e deixar Luis, sobretudo depois da isquemia, ela estava sempre voltada para essa preocupação.

E, ao contrário do que ela pedia ao Pai, Ele, na sua imensa sapiência e bondade não lhe concedeu o pedido, ao invés disso deu-lhe a oportunidade de, saudável agora, cuidar dele, lá do alto, e esperá-lo, ou melhor, esperar-nos, quando chegar o nosso dia de partir.

Não sei se fiz pela minha mãe tudo que podia fazer. Também não sei se o que fiz foi o meu melhor, e isso só o plano superir pode julgar e sentenciar, ninguém mais. Mas tenho certeza do que posso fazer ainda e sei que posso fazer exatamente aquilo que é a coisa mais importante para ela: cuidar, aqui na terra, do filho que ela certamente aguarda no céu.

Fique em paz mamãe, o seu filho-tesouro é a minha joia mais preciosa agora.

Obrigada, primeiro, pela vida.

Obrigada por todas as lições de vida!

Não vou te pedir perdão pelas minhas faltas, porque mãe já é o perdão eternizado.

Posso não ter sido a filha predileta, mas mesmo silenciosa a Senhora nunca conseguiu esconder o quanto me admirava.

Obrigada, por ter me dado à oportunidade de, com a sua partida, ter a certeza que continuamos vivos e ter podido praticar a minha fé.

Não sei se ainda teremos a oportunidade de nos encontrarmos numa dessas maravilhosas cidades espirituais, durante a transição de uma vida para outra, também não sei se ainda reencarnaremos juntas, como família ou como amigas, simplesmente. Mas se assim Deus, no seu fabuloso plano da eternidade da vida decidir, saiba que vai ser muito bom reencontrá-la de novo.

E se por acaso a Senhora ainda trouxer a genialidade das artes manuais e da costura, por favor, não deixe de me ensinar tudo dessa vez.

Eu, ainda, preciso dizer que te amo? Não vou sentir saudades suas só agora, porque eu sempre senti em todos os momentos em que não estivemos perto.

Beijos


NOTA: Bernadete Cavalcanti, é, para mim, uma espécie de amiga/irmã. Jornalista de primeira linha e de caráter dez, Bernadete, no meu entender, face o seu imenso potencial, sempre foi sub-utilizada. No excelente artigo acima ela externa todo o seu amor por D. Felisbela, sua querida mãe e nos mostra o que muitos gostariam de dizer em situações análogas.

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