-UM CONTO DE CLAUDER ARCANJO

JESUINO*
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O sol caía na barra, espalhando um véu de tristeza no Tabuleiro Grande. As últimas reses, com os ossos quase a furar a courama, sob a copa dos poucos juazeiros, ruminando os brotos catados a custo durante mais um dia longo e quente. Os olhos de Jesuíno correram o nascente. Não precisava, mas, por costume, colocou a mão sobre a testa, em forma de pala, como apurando a visada, na ilusão de sombrear um sol já recolhido. Ao tempo em que mastigou uma meia dúzia de palavras na boca ressequida, mais por desfastio do que por intenção de conversa. Também pudera, estava sozinho. Os olhos arregalados dos bichos, vidrentos, esbugalhados e perdidos, cobrança de vida ao velho vaqueiro. Há muito as chuvas andavam fugidas dessas bandas. O sol maltratava; seu castigo era secar, torrar e queimar: açudes, plantas, solo e criação. Muitos migraram. Vendendo, a preço de banana, o resto da bicharada. E, juntando os poucos pertences, a se meterem nas carroçarias dos paus-de-arara. Retirantes de olhos secos, sem rumo. A partida dos parentes por várias noites na lembrança de Jesuíno. “Vamos, homem!...”. Na madrugada, o mesmo chamado puxando pelos punhos da rede. “Não tenho nada o que fazer longe daqui. Ora, diachos!...”; devolvia. Jesuíno cavara cacimbas no leito dos riachos, cortara palma e mandacarus, fizera de todo naco de verde forragem picada para o gado. Mas, agora, não havia mais nada, nem para ele nem para os animais. No início da manhã, desesperançado, resolvera tanger os bichos para longe. Não queria ver a morte do Zebu, da Malhada, da Estrela de Ouro, da Rainha do Gado... No entanto, as alimárias não arredaram pé do oitão da fazenda. Pelo jeito, morreriam juntos. Com o negror da noite, Jesuíno armou a rede nos caibros do alpendre, deu os últimos goles na água salobra e grossa, e aquietou-se. Pensou em Maria e nos meninos. “Vão! Eu fico cuidando da casa. Quando as chuvas caírem, voltem na mesma pisada. Já estarei com o roçado pronto, em tempo de vocês me ajudarem enterrando as sementes”. O canto agourento de uma rasga-mortalha cortou a mata. Cansado, ele dormiu. Foi uma das noites mais longas, toda a sua vida corrida na frente dos olhos marejados. Pais, amigos, vaquejadas, Maria, o casório, os meninos, os roçados, a fartura, os primeiros bichos, a compra do Tabuleiro Grande, as grandes invernadas... De repente, tão vivo, um ronco de trovão. Sentiu frio. “Será que é a morte, meu Deus?”. Não teve coragem de abrir os olhos, enrolou-se com as pernas. Pela primeira vez, teve medo. E um estralado ainda maior nas capoeiras, como se o firmamento fosse rasgado de alto a baixo. “Será o descosturar da vida, meu Deus?”. Jesuíno quis se lembrar dos seus pecados, o padre dizia que era bom pedir perdão. “Deus é grande e glorioso, e enorme a Sua misericórdia...”. No entanto, só lhe vinha à mente a dor da seca, e o estirão de morte e de cruzes que ela deixara nas capoeiras. Outro ribombar violento; desta feita, quase destelhando o velho casarão. Jesuíno sentiu-se molhado. “Mijo de assombro, meu Deus?...”. Outro chicoteio de luz e de som. Quando deu por si, Jesuíno estava no chão frio de tijolos. De olhos vidrados na barra tomada pelos clarões de luz. Os pingos eram tão fortes, que o telhado, já velho e esturricado, deixava coar um véu de gotas reluzentes por toda a casa. – Estou no Céu!... – louvou. Saltou o alpendre e foi juntar-se ao gado, que já mugia festivo. Jesuíno só queria prestar contas a Deus se junto com eles.
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*Conto inédito do livro Licânia que será lançado hoje, às 19h, no espaço cultural da TCM – TV Cabo Mossoró.
Clauder Arcanjo – Professor

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