- ARMADILHA DE VIDRO.
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ARMADILHA DE VIDRO (por Clauder Arcanjo)
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Leio os poemas de Armadilha de vidro, de Diva Cunha, e fico a catar versos dessa poetisa potiguar. Uma armadilha verbal sobremaneira lírica.Na parte primeira, “Rastro-fêmea”, um peculiar acento rítmico de braços dados com Eros. Anunciado desde a epígrafe: “Este poema é seu/ leia narima/ o meu fervor fiel/ sua menina”. Vou visitando os versos de Diva, e inquieto-me, ao tempo em que me extasiocom vários achados poéticos: “... recordai a fluidez do amor/ a intensa edolorosa/ carne magoada”.
Diva Maria Cunha Pereira de Macêdo nasceu aos 10 de dezembro de 1947, em Natal-RN. Formada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cursou pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, e é doutoranda pela Universidade de Barcelona, Espanha.
Estreou com Canto de página (1986). Seguiram-se A palavra estampada e Coração de lata. Em todos, a indiscutível marca de uma escritora madura,de uma tecelã singular dos fios da razão e da emoção.
Gosto de matutar estrofes, e Diva me faz cativo seguidas vezes, quando tento prosseguir viagem por entre as páginas-grades de sua Armadilha devidro: “... vou além como um bicho/ que na armadilha deixa a pata/ para morrer sozinho/ uivando na mata”. Parafraseando-lhe, Diva, antes que estalâmina fira definitivamente os legítimos anseios, façamos um pacto: eu me entrego todo, meio a meio.
A verdadeira e sublime poesia (“Há um rol infindo de palavras/ pedindo urgente uma pronunciação...”) tem um quê de anunciação, “que exulta ao toque/ do que ousa”. Quer no terreno erótico (“a carne esconde/ a luz profunda/ da tarde dourada”), quer nas imbricadas reminiscências da memória (“A avó era tão pequena/ que de longe eram/ duas meninas/ vestidas por outros destinos.”; “... a casa jaz além da memória/ num evento longínquo/ que o vento desfolha.”), quer no desvendamento dos porquês do mister literário (“Um verso me sacode por inteiro/ sua agulha me ferroa/latejo na letra escura/ grossa como sangue...”; “Há um espaço impossívelde ser/ vencido, porque inomeado...”).No entanto, Diva Cunha escreve como quem vive leve, solta e soberanamente mulher. “Fazei de mim/ poderes do alto/ a mais Madalena/ das mulheres/recolhendo nos cabelos/ o suor do homem/ que não me salvará”; clama, comose em prece.
Há, na poética da autora de Coração de lata, um erotismo com laivosfilosóficos, raro na poesia contemporânea papa-jerimum. “Come na minha carne/ a tua arte perdida./ Tira da minha vida/ a parte mais leve que/ te cabe.”
Pesquisadora renomada, professora aposentada de Literatura Portuguesa da UFRN, co-autora do já clássico Literatura do Rio Grande do Norte —Antologia (2001), Diva Cunha atualmente faz parte do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Norte, e do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Interdisciplinares da UFRN.
“Paisagem-memória”, segunda parte de Armadilha de vidro, revela-nos a Diva memorialista. “Desta janela/ vê-se/ o que não há/ do lado de lá”; adverte na entrada, numa espécie de pórtico poético. De vez em quando, um viés irônico, como no trecho de “Auto-retrato sem direito a retoque”, poema escrito em Barcelona, em agosto de 2002: “... ao nariz restou/ espalhar-se para os lados/ antes de cair de vez/ no oceano da boca/ o que daria muito o que falar”.
“Venho dos limites da dor/ com as vestes decompostas/ as carnes frias/sou palavra que pode acender-se/ ao menor toque/ ou murcha ocultar-se debaixo dos lençóis/ homem ou mulher/ peço água para os regressos/ da sede antecipada e atenta”; canta Diva Cunha. E, ao assim cantar, presenteia-nos com um lavor metafórico sui generis; zelosa na forma, na mensagem e no engenho.
A poesia dos tempos atuais há de dar vazão aos embates pulsantes do mundo contemporâneo. Na pressa louca (“sem bússola partimos/ em busca do sol”), o poeta capta, antecipa, e tenta desvendar, o sofrimento que nos rodeia. Náufrago de si mesmo, num réquiem de despojos pessoais, se esmera em si, pois tão-somente assim, bem sabe, conseguirá se aproximar da tradução dador do próximo.
“Arteira e buliçosa/ menina buliçosa/ mora no poema/ como a onça na cova”. “Armadilha de letras” da escritora de Canto de página. E Diva manifesta-se plural e una, mesmo quando se debate tomada no inquietante jogo da palavra-verso, dédalo sem saída. “Duas ou três da madrugada/ a poesia cobra seu pedágio// destilo as moedas guardadas/ liquidando a fatura/ que me exibe inteira”; desabafa.
Logo a seguir, em “Reedição”, interroga-se: “Que mão retoca/ dos erros e refaz/ na delicadeza dos gestos/ o projeto que me lança/ asa/ em sua dança?”
Sem fronteiras, Diva Cunha, em “Limites”, confessa: “Me movo num mar de escolhos/ aos tropeços e braçadas tontas// águas turbulentas me salgam a carne/ endurecem as articulações/ (...)/ me salva a malícia ligeira das tardes/ onde me estendo inteira...”. E, ao assim agir (“Vestes infladas/ buscam mares/ nunca Dante/navegados.”), Diva desvela-nos o brilho singular de sua Armadilha de vidro, “o mais é a exaustão da forma/ língua comprimida, carne descamada e abatida”.
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Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão, espaço Questão de Prosa, edição de 5 de outubro de 2008.
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