ARTIGO.
UMA CORAJOSA MOÇA
MAL COMPORTADA.
Por Léa Maria Aarão
Reis – via Carta Maior
26 de junho de 1968. Passeata dos cem mil, uma das
maiores manifestações de rua da história republicana, no Brasil. Cidadãos de
todas as origens, idades, credos e profissões desfilavam pela Avenida Rio
Branco, Centro do Rio de Janeiro com uma disposição nunca vista antes. Homens e
mulheres desciam dos edifícios de escritórios a todo instante para engrossar a
multidão que protestava contra o arrocho, cada vez maior, da ditadura
civil-militar no país. Na linha de frente da passeata - a foto é histórica -,
um grupo de belas mulheres, atrizes e estrelas do cinema, televisão e teatro,
de braços dados, desafiavam, corajosamente, o sistema e os generais. Tonia
Carrero, Eva Wilma, Odete Lara, Leila Diniz e Norma Bengell, ela na época com 33 anos, abriam o cortejo.
Seis meses depois Norma era presa e o AI-5
amordaçava as moças da comissão de frente, a multidão reunida na avenida e
todos brasileiros.
Menina criada no Lido, em Copacabana, bairro carioca
reduto dos funcionários públicos, nos anos 50, filha de mãe enfermeira e de
origem classe média simples, Norma era uma bonita moça recém saída da
adolescência, inteligente, com educação básica, um admirável corpo e a
determinação singular para os seus 15 anos: queria ser alguém especial na vida.
Dura tarefa para a garota de origem modesta, em um tempo em que as mulheres
casavam e se conformavam em ser donas de casa bem comportadas como lembrou há
dias a recém premiada Nobel da Literatura, a escritora canadense Alice Munro,
de 82 anos.
Com Norma foi diferente. Ela afirmou, dentre outras
conquistas pessoais e profissionais, o protagonismo da mulher da sua geração,
das moças que, como ela, não seguiam os modelos sociais ainda rígidos da época.
Leila Diniz, uma companheira de geração, costuma
ser lembrada como o belo fetiche da
liberação da mulher brasileira. Não chegou a envelhecer; morreu jovem e bonita
e sua lenda foi preservada. Já Norma, assim como Leila outra moça mal
comportada, contribuiu até mais, para salvar quantas meninas da repressão, do
conservadorismo e da ignorância. Mas morreu aos 78 anos, e pobre.
O primeiro emprego, modelo de uma célebre loja de
alta costura carioca, não durou muito. A atmosfera esnobe do lugar e o físico
voluptuoso de Norma não se deram bem. Da passarela de moda pulou para o teatro
revista, um gênero que, na época, fazia grande sucesso. Ali Norma começou a
construir seu prestígio como uma das estrelas dos espetáculos de plumas da
boate Night and Day. Trabalhou no primeiro filme, O homem do Sputnik, em 59, e
sucedeu Elis Regina no show de bolso Contraponto, da mitológica boate daqueles
breves anos dourados, a Zum Zum. Lá tentou a profissão de cantora com a sua voz
afinada, mas pequena, adequada para a bossa nova recém nascida; mas
insuficiente para voos mais altos.
Numa madrugada, no badalado restaurante Fiorentina
frequentado por boêmios, artistas, jornalistas e respectivos aspirantes, Norma
recebeu do respeitado diretor Ruy Guerra o convite para participar do filme Os
cafajestes (1962). Sua sorte ia mudar. Mas havia uma peculiaridade no trabalho:
ela devia ser filmada nua – nu frontal -, na sequência de um estupro, à noite,
em uma praia. Norma topou. Sua corrida desesperada, sem roupa, pelas areias da
Praia do Forte, em Cabo Frio, lindamente iluminada pelo excelente fotógrafo
paulista Tony Rabatoni, ia catapultar a moça para a fama, aqui e lá fora. A
ajuda veio na mesma época com o filme de Anselmo Duarte, O pagador de
promessas, Palma de Ouro do Festival de Cannes. Norma filmava com Anselmo, em
São Paulo, e ao mesmo tempo trabalhava com Ruy, no Rio. Na Ponte Aérea,
comprava o passaporte de entrada definitiva no mundo artístico: sessenta filmes
como atriz, um deles como diretora (era o que mais desejava fazer, quando
mocinha), Eternamente Pagu, vários discos gravados e inúmeros trabalhos no
teatro e na televisão.
Na fase seguinte das várias vidas que viveu
intensamente, casou com o ator italiano, Gabrielle Tinti, viveu em Roma no
círculo de amigos do legendário cineasta Luchino Visconti e só voltou ao Brasil
mais tarde, quando se tornou diretora.
Depois da contenda do bloqueio de seus bens pela
justiça por um suposto desvio do dinheiro captado para a produção de O guarani,
filme que estava dirigindo em 2007, Norma foi sendo posta à margem pelo mercado
de trabalho, por vários amigos e conhecidos. “Mesmo se um dia eu ganhasse o
Oscar seria sobre o episódio do processo que iam falar”, costumava dizer,
entristecida.
Norma Bengell foi importante não só para a nossa
cultura, como para a política em um
sentido mais amplo, comenta o cientista
político, Antonio Lassance: “Ela ajudou, se expondo, a combater a ditadura,
colocou a cara a tapa contra o regime e arriscou seu prestígio em defesa da
liberdade, da democracia e da luta contra o atraso. Hoje, muitos artistas se
alinham justamente no sentido contrário e emprestam suas caras ao atraso. Foi
figura de destaque na bossa nova e no cinema novo e representou, na época, um
novo país que estava surgindo, mais industrializado e mais urbano.”
Mesmo nos últimos cinco anos de vida, de doença e
solidão, o rosto da Bengell, como era carinhosamente chamada, permaneceu
iluminado pelo seu olhar perturbador, penetrante e meio esgazeado, de
permanente espanto. Alguém que amou viver e quis entender a geleia geral que a
vida é.
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