NEUROPEDIATRA DIZ QUE EXISTE UM INFANTICÍDIO NO RIO GRANDE DO NORTE.
O neuropediatra Arthur Jorge de Vasconcelos Ribeiro,
de Natal, escreve um texto duro, feroz, mas verdadeiro, retratando uma
realidade cruel e real sobre as condições de gestação e nascimento das
crianças em especial de famílias humildes e do interior do Rio Grande do
Norte.
“As crianças estão sendo mortas ou tornadas inválidas por
uma mistura de incompetência, ignorância, ganância, covardia e fuga da
responsabilidade”.
É pra ler, refletir e repensar sua cidadania.
Nossas crianças
Quanto devemos ser aguerridos para
impedir que bebês morram ou fiquem com sequelas neurológicas logo ao
nascer? Sinto informar-lhes, mas isso é rotina no Rio Grande do Norte.
O primeiro ato dessa tragédia ocorre
no atendimento Pré-Natal de nossas gestantes, quando, pela falta de
exames ultrassonográficos e outras avaliações em número suficiente, não
são dados os diagnósticos de várias malformações nos fetos, ou
reconhecidos os bebês grandes demais para nascerem por via vaginal.
No ato seguinte, as futuras mães não
podem receber a orientação de onde devem apresentar-se para parir (não
há essa logística no SUS); nem a estrutura do SUS permite a indicação
precoce de cirurgia cesareana, pois a norma é sempre se tentar o parto
vaginal (nem se, por exemplo, o peso fetal estimado pelo ultra-som seja
maior que 4 Kg).
No terceiro, faltam-lhes transporte adequado até a maternidade.
Na sequência, as Unidades Básicas de
Saúde e as maternidades menores, via de regra, não têm
cardiotocógrafos, que são aparelhos para monitorar o sofrimento fetal.
Nesse contexto, até alguns anos
atrás o problema das maternidades com menos recursos era a decisão sobre
quais eram as gestantes de maior risco.
Nos últimos anos, contudo, algumas
unidades de atendimento ao parto estão simplesmente sendo fechadas. No
desespero, sem conseguir atendimento em outro local e avizinhando-se o
momento do parto, as grávidas vão de carona ou de táxi para a
Maternidade-Escola Januário Cicco ou para o Hospital José Pedro Bezerra.
São recebidas lá em trabalho de
parto avançado ou mesmo após o parto dentro do carro que as transportou.
Sem que tenham sido apontados pelo Pré-Natal os fetos de maior risco,
algumas vezes em ambulâncias inadequadas vindas de cidades distantes.
Com muita sorte, a grávida dá à luz
uma criança saudável e consegue uma vaga em uma enfermaria lotada, num
leito sem distanciamento do leito vizinho. Com um pouco menos de sorte,
ficam numa maca no corredor ou no infame “leito-chão”.
Se você não é potiguar, explico-lhe:
“leito-chão” é o eufemismo para não se dizer que as mulheres pobres e
seus recém-nascidos de um ou dois dias ficam jogadas, sim, o nome é esse, jogadas,
no solo. Diz a Bíblia que Jesus nasceu pobre, mas aqui decerto seria
considerado afortunado, pois pelo menos uma manjedoura tinha para se
apoiar.
O desastre maior ocorre com os que
poderíamos chamar de azarados. Mas “azarado”, certamente, não é um termo
adequado para quem foi atingido por um padrão, repetitivo há gerações,
de falta de estrutura e organização na saúde pública. As maiores vítimas
(sim, “vítima” é o melhor termo) são os que passam por falta de
oxigênio ao nascimento.
Até um determinado nível de anóxia, a
sequela pode ser superada pela adaptação do cérebro e com o uso de
eventuais estimulações (fisioterapia, fonoaudiologia, terapia
ocupacional, psicopedagogia) que a criança vier a receber.
Num nível mais grave, as sequelas
são abundantes: fraqueza de movimentação voluntária associada a membros
enrijecidos (paralisia cerebral), dificuldade de aprendizado,
dificuldade de fala, déficits visuais e de compreensão auditiva (pelos
problemas nas áreas cerebrais responsáveis pela visão e pela audição),
associação com epilepsia. No maior nível de gravidade, a criança morre.
Algumas vezes também a mãe.
Meu nome é Arthur, sou médico
neurologista infantil do Centro de Reabilitação Infantil do Rio Grande
do Norte, o CRI. Nas últimas semanas venho, de modo informal,
contabilizando as causas dos problemas das crianças que atendo lá.
Comecei a fazer isso porque
desconfiava que a proporção de crianças com sequela de anóxia neonatal e
outras doenças evitáveis era grande. No dia em que atendi menos
pacientes com anóxia, eles foram um terço do total. No que atendi mais,
foram dois terços.
Calculando por alto os sequelados de
anóxia são, portanto, metade da clientela do CRI. Uma criança com
paralisia cerebral gera gastos para o governo com pediatra geral,
neurologista, ortopedista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicólogo,
psicopedagogo, psicomotricista, nutricionista, odontologista, educador
físico, assistente social, eletroencefalogramas, radiografias,
tomografias computadorizadas (ou ressonâncias magnéticas), exames
hematológicos e bioquímicos, antiepilépticos, relaxantes musculares,
antipsicóticos, aplicação de toxina botulínica na musculatura espástica,
cirurgias de colocação de válvula de gastrostomia, cirurgia de
tenotomia, cirurgia de luxação de quadril, transporte do paciente e
família e vários outros gastos relativos ao tratamento e reabilitação.
Se a família for de baixa renda tem
direito ao LOAS, um benefício em dinheiro entregue pelo governo através
do INSS, no valor de um salário mínimo mensal. Não se pode alegar que o
atendimento à gestação e ao parto é de má qualidade porque custa caro.
Muitíssimo, incomparavelmente mais caro é atender os sequelados.
Se uma pessoa é atingida por um raio, podemos chamar de acidente, mas esse contexto que lhe descrevi, não.
As crianças estão sendo mortas ou
tornadas inválidas por uma mistura de incompetência, ignorância,
ganância, covardia e fuga da responsabilidade. Saindo do confortável
papel de reclamar, aponto os culpados e sugiro a soluções para
resolvermos essa nossa sina.
Começo acusando aqueles que, tendo
acesso a planos de saúde e atendimentos particulares, ao leem esse
texto, ficam aliviados por eu ter me referido somente ao SUS até agora.
O seu alívio é irmão do desprezo dos
donos de escravos para com os filhos dos cativos, irmão do desprezo dos
nazistas para com as crianças judias, irmão do desprezo das castas
superiores aos filhos dos intocáveis na Índia. Peço a você que se
indigne.
O fato de estarmos assistindo há
décadas não nos dá o direito de considerar natural a morte ou
invalidação dos nossos descendentes. Peço que se refira às crianças que
nascem em maternidades públicas como eu me refiro aqui: nossas crianças.
Sinta o peso de verbalizar a
possibilidade de sua prole estar com paralisia cerebral. Tenhamos
solidariedade com nossos conterrâneos qualquer que seja a classe social.
Na doença, os seres humanos
abandonam a estratificação social. Numa clínica de hemodiálise, por
exemplo, o milionário com a circulação sanguínea em filtração por um dos
aparelhos conversa de igual para igual com o favelado na máquina
vizinha.
Gostaria que você visitasse o CRI.
Fica ali na Avenida Alexandrino de Alencar, vizinho ao Bosque dos
Namorados e em frente ao IBAMA. Olhe nos olhos das mães e das crianças
que passam por lá. Converse com elas. Sente-se num daqueles bancos de
frente ao corredor das salas de ambulatório. Imagine-se substituindo o
alívio de ter uma opção ao SUS pela angústia dos usuários do CRI.
Irmane-se com eles. Enquanto nos sentirmos um povo diferente do povo que
usa o SUS, o povo potiguar (ou seja, todos nós) não veremos o fim dos
gritantes problemas na saúde pública.
Em segundo lugar aponto o dedo para a imprensa.
Não apenas pelas maiores empresas de
comunicação serem propriedade de membros da classe política, mas porque
mesmo a imprensa independente se vale quase que somente da imagem
chocante, marcante, para noticiar. Assim, um corredor lotado de uma
maternidade dá um ótimo vídeo para a televisão ou uma ótima foto para o
jornal, mas uma Unidade Básica de Saúde sem funcionar, não.
O repórter não se interessa pela
imagem de um Centro de Saúde vazio e sem pessoas para entrevistar. Por
conseguinte, a causa da maternidade de referência lotada, que é a falta
de estrutura e organização no Centro de Saúde e nas maternidades de
nível primário, raramente é alvo de cobrança pelos jornalistas.
Em terceiro lugar cito as pessoas
que vendem o voto. O componente de ignorância e de alheamento ao fator
cultural que nos leva a dar importância a uma eleição deve ser
considerado, mas todos sabem que isso é crime. Quando ocorre a compra de
votos, o compromisso do político com o bem estar da população que o
elegeu é zero.
Por último a causa maior desse
verdadeiro infanticídio são os ocupantes de cargos de governo. Eu acuso
todos os ex-governadores do Estado do Rio Grande do Norte e a atual
Governadora e os ex-prefeitos e atuais prefeitos de Natal e do interior
do estado de traição ao povo. Suas mãos estão sujas de sangue de
crianças.
As mãos de muitos senadores,
deputados federais, deputados estaduais e vereadores do RN igualmente
também estão. Que ninguém me fale da conjuntura política adversa. Não
aceito que os bebês paguem com a vida e com a saúde por causa dessa
conjuntura. Na campanha, os candidatos não apresentam metas objetivas
nem dão justificativas para aquilo que já desconfiam que não conseguirão
no cargo eletivo, apenas fazem promessas inalcançáveis.
Certa vez, pesquisei o preço de um
eletroencefalógrafo (aparelho de realizar eletroencefalogramas), pois um
filantropo gostaria de doá-lo ao ao Hospital de Pediatria da UFRN.
Liguei para a primeira empresa e pedi um orçamento, que me seria mandado
por e-mail posteriormente. A diretora da empresa com quem eu conversava
já disse o preço que seria, porém, pediu que eu informasse onde seria
instalado o aparelho, pois precisariam registrar na ANVISA. Quando eu
contei, ela falou: “ah, mas para instituição pública o preço não é esse,
não, é o dobro”. Fiquei chocado. Argumentei que a compra não estava
sendo feita pela direção, e sim por particulares que doariam o aparelho
ao hospital, pagando à vista, mas não teve jeito. Nos dias subsequentes
conversei, então, com várias pessoas do meu círculo de amizades e elas
confirmaram que esse tipo de prática é comum e deve-se às exigências de
propinas por parte dos políticos para liberar o pagamento dos produtos
comprados por licitação. Depois disso, peguei o hábito de ler
atentamente as placas das obras públicas informando o valor gasto. Todas as
obras públicas são superfaturadas. Se você duvida, observe as placas e
peça a alguém que trabalhe no ramo da engenharia civil para estimar
quanto custa de fato cada obra. Um exemplo: vi a placa falando o valor
gasto na construção de um posto policial: R$ 58.000,00. Perguntei a um
amigo engenheiro por quanto ele faria uma construção igual na época: R$
14.000,00.
Há uma pressão por parte do
Ministério Público para que haja transparência nas contas das
prefeituras e do governo, e que seja usado o pregão eletrônico, tido
como mais confiável que as licitações, mas os governantes resistem. O
que eles fazem, na realidade, segue na direção oposta.
No último mandato de Vilma de Faria
como governadora, o filho dela foi acusado pela Polícia Federal, na
Operação Hygia, de envolvimento com desvio de dinheiro público da saúde.
O Ministério Público descobriu, na gestão de Micarla de Souza na
Prefeitura de Natal, um esquema de superfaturamento e desvio de recursos
da ordem de milhões, nas contas da UPA do bairro de Pajuçara. Quando um
criminoso mata uma pessoa na rua é chamado de bandido. Como devem então
ser qualificados os que causam os problemas nos postos de saúde,
maternidades e hospitais, que levam à morte ou invalidação de centenas
de crianças?
Mas não é apenas através do roubo
puro e simples via corrupção que os mandatários públicos prejudicam a
saúde pública. A prática do preenchimento de cargos comissionados
através de indicação política ou por familiares também é nociva.
Imagine-se na situação de ser o dono de uma loja de roupas. Se você
empregar alguém devido a este funcionário ter capacitação e disposição
para o trabalho, poderemos nos queixar e mesmo demiti-lo caso ele deixe
de trabalhar corretamente. Se empregarmos um parente ou um amigo, no
entanto, não poderemos criticar o que ele faz nem, muito menos, puni-lo
se não produzir no trabalho. Essa é a situação dos funcionários
comissionados escolhidos por motivos outros que não a competência. Os
cargos de alto escalão da saúde com maior possibilidade de gerar pedidos
de propina são escolhidos por indicação “política”. Forma-se então uma
cascata de corrupção, incompetência, insatisfação, funcionários
fantasmas, baixos salários (com desvio de dinheiro, muitos cargos
comissionados para serem pagos e má gestão dos concursados, sobra pouco
dinheiro para pagar quem realmente trabalha), má qualidade do serviço
público.
Empossar-se técnicos com capacidade
em administração de saúde pública nos cargos comissionados e que
recebessem metas de trabalho, apoio político do governante para cumprir o
dever e fiscalização e premiação pelo alcance da meta faria, sim uma
diferença enorme. Pressionemos para tal.
Outra medida bastante necessária
seria a criação de um mecanismo para dar independência à Comissão de
Vigilância Sanitária (COVISA). No modelo atual, o executivo fiscaliza,
além dos hospitais privados, suas próprias instituições! Já pensou se
fosse, permitido, por exemplo, cada cidadão fiscalizar seu próprio
pagamento de Imposto de Renda?! Pois é, É por conta da estrutura de
comando da COVISA que exige-se dos hospitais privados a higiene e
organização máximos, e a exigência para os hospitais públicos é zero, a
não ser quando há alguma pressão por parte da imprensa, do Conselho
Regional de Medicina ou do Ministério Público.
Desculpem-me se me alonguei demais
nessa denúncia e no desabafo. Eu não queria deixar de detalhar o que eu
julgo serem as causas desses problemas que atingem crianças no nosso
estado. Precisamos saber como ocorre para saber como agir, lutar contra
os pilantras que dilaceram as finanças da saúde pública. Esses abutres,
que se beneficiam da situação atual, lutam contra as mudanças que
salvariam as crianças, mas os fariam perder seus cargos, vantagens em
licitações, propinas.
Em nome da vida e da saúde de nossas crianças, e sabendo do que realmente precisa ser feito pela saúde pública, lutemos.
Arthur Jorge de Vasconcelos Ribeiro
É neuropediatra
Fonte: Jornal de Fato - coluna retratos do oeste por César Alves.
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